quarta-feira, 9 de março de 2022

A Comadre da Cegonha



Num daqueles dias primaveris, enquanto as macieiras floriam e as videiras rebentavam no seu esplendor, a dona comadre, a senhora Raposa, de nome Margarida, descansava à sombra de uma figueira. Já tinha tentado umas quantas correrias para encher a sua barriguinha: tentou um porco, uma ovelha e até uma soberana vaca. Conseguiu a muito custo uma pequenina lebre para o seu almoço enquanto a mãe coelha estava distraída. Não podemos condenar a senhora Raposa, é que ela também tinha uns filhotes muito pequeninos, acabadinhos de nascer. E os pequeninos gostam de leitinho! Mas se a mamã Raposa não se alimentar também não tem alimento para os seus filhinhos.

Isto é como tudo na vida: comemos e bebemos para vivermos e dar o melhor aos nossos filhotes. – Faz parte! E a senhora Raposa passa o ano inteiro à procura de comida, tal como a senhora formiga: todo o ano, ano todo a trabalhar enquanto a cigarra o passa a cantar. A cigarra pergunta: “porque estás tão atarefada no verão a trabalhar?” “Porque estou a angariar mantimentos para o inverno” “Eu cá passo o verão a cantar ao sol, à vida, à liberdade e ao amor” – Diz a Cigarra.

 Pois é! Mas quando da chegada do inverno, a formiga tem muita comida armazenada e a cigarra não tem nada. Bem, tal e qual a senhora Raposa. Ela é muito parecida com a senhora Cigarra: - Um dia de cada vez-

Mas voltemos ao início da história. Lá andava a senhora Raposa todo o ano a retalhar comida. E digo retalhar porque ela é muito esquisita: Se as maçãs estão verdes, não estão vermelhas. Se os pêssegos não caem é porque não estão maduros, as ameixas estão muito amargas, a erva, come-a tu!

Um dia, e assim muito rapidamente, só mesmo para contar um prefixo do dia a dia da senhora Raposa, eis que passa por baixo de uma pérgula, ou latada, como queiramos chamar, e cai uma uva madura: Só para não voltar atrás pensa: “Estão verdes. Nem os cães as conseguem tragar”. Assim é a senhora comadre. Mas vamos lá ver: nesta história já chamámos comadre muitas vezes. Agora vamos contar um pouco sobre a comadre da senhora Raposa. Antigamente todos eram comadres, compadres e até parceiros para toda a vida juntos da mesma carteira na escola. E a senhora Raposa também tinha uma parceira: a parceira de caça. E era nem mais nem menos a senhora Cegonha de nome Rosa Pardalinha. Enquanto a senhora Raposa caçava em terra, a senhora Cegonha caçava no céu. E tantas primaveras passaram que as duas senhoras já se tratavam por tu.

Um dia de outono, lembraram-se de dar à língua. E história conta contos e lendas por quem os tens, lá vai uma e outra que combinaram um jantar entre elas. Então e porque não? “Vamos jantar a minha casa. Vemos um filme, bebemos uns chás de ervas frescas ali do monte da Coelheira e até uma festa de pijama.” Às seis horas em ponto (porque anoitece cedo e na casa da senhora Raposa não há eletricidade, só um candeeiro a petróleo), a senhora Cegonha estava presente. Bem, pensou ela: “talvez um pouco de jeropiga para entrada e umas castanhas refazidas na areia assadas venham a calhar para entrada antes do jantar”. Nem castanhas nem jeropiga, nem uns figos secos quanto mais umas amêndoas caramelizadas: Vamos diretas ao jantar. Espantos dos espantos, uma mesa posta sem entradas, sem cadeiras e, vejam lá a situação sem toalha. Apenas dois pratos rasos no chão. Caramba, nem a lareira tinha acendido!

“Vamos comer, disse a senhora Raposa”

 A senhora Cegonha, mesmo que quisesse, nem poderia contar às suas amigas o que a sua comadre lhe ofereceu, porque não conseguiu comer ou penicar com aquele bico grandalhão num prato raso. Vejam lá: “uma amiga da caça de tantos anos e faz isto”. Pode lá ser! “pensou indignada”. Nada disse. Raposa matreira! Vou dar-te uma lição!

Passados dias a senhora Cegonha convida a sua comadre para jantar, algo que a Raposa aceitou de bom grado. A senhora Raposa até chegou pontual. A mesa estava pronta, mas desta vez estavam duas azeiteiras, não daquelas que se usam no dia a dia, mas daquelas de antigamente, grandes, com um bico enorme para levar muito azeite e para se fazerem as provas das farinheiras ou os fritos à lareira. Bem, temos que dizer que a senhora Cegonha teve um colapso de consciência, tanto que não se queria vingar! De forma nenhuma. Acontece! Não sou má, não sou como a minha comadre. Com estes mieis de consciência, a senhora Cegonha convidou a comadre Raposa para uma ida à caça noturna.

Foram juntas, vejam só!

A senhora Raposa montou no pequeno corpo da senhora Cegonha e lá foram esvoaçar pelos grandes pinhais de Águeda, Côa, Valancho e Quinta da Povoa.  Deram voltas e voltas até ao anoitecer escuro como breu. Eis que a senhora Raposa viu um coelho, esfomeada, assim como quem está sempre a comer, pois nem guarda a comida como a cigarra, fez- se ao mundo pensando como a formiga. Eu vou apanhar este coelho que se encontra por baixo de mim e comê-lo. Nem se lembrou que estava no dorso da sua comadre, nem se lembrou que estava a esvoaçar de tão egoísta que era, e assim foi. E aí vai ela toda airosa! De repente incrinou-se com a maior vontade de comer, come quem sempre vive para comer e eis que cai das asas da senhora Cegonha. Caiu.!

Ainda hoje se vê, quem por lá passar, um precipício numa montanha de fragas um volto, um cismo, ou uma montanha de pedregulhos milionários para quem lá anda.


Carla Bordalo

Amendoeiras em Flor




Há muitos anos atrás, quando ainda o país era governado, ou desgovernado pelos mouros quem sabe não conta, existia um príncipe famoso por toda a península Ibérica. O seu nome, Almorávidas, jovem de constituição colossal, heroico aos olhos do povo, nunca antes fora derrotado por maiores e que por mais batalhas travasse.

Certo dia ao nascer do sol, dirigiu-se com os seus mais temidos homens junto à praça onde os escravos seriam vendidos. Eis que seus olhos negros se deparam com uns belos olhos azuis, cabelo amarelo e pele clara como a neve. Corpo esguio e refletido aos primeiros raios de sol uma bela jovem, triste, claro está, mas lindíssima criatura feminina. Deslumbrado, nem tanto pela formosura, pelo corpo, olhos ou cabelo, o príncipe também ele ficou aprisionado.

O cérebro ordenava que se movesse, que as pernas andassem e seu corpo saísse dali para fora, mas como tudo na vida, nem sempre nestas ocasiões o coração obedece. Sentiu o que nunca sentira! Que raio! de repente os seus ouvidos ouvem a sua própria voz ordenar que a bela escrava, quase uma menina se aproximasse.

- Como te chamas, perguntou ele.

- Gilda, respondeu.

- Gilda? Que tal um nome diferente: Princesa do Norte. 

A escrava encolheu os ombros e desinteressada responde que como propriedade que é, o novo título aceitaria de muito bom grado. O coração do príncipe bateu descompensado, o peito apertou como quem aperta uma corda ao pescoço de um animal selvagem. A voz voltou a sair apenas para declamar a liberdade da escrava. Queria passear com ela, queria mostrar os jardins e todo o reino. Queria ainda montar o seu cavalo castanho, segurar a mão da jovem, tocar o seu corpo e beijar os seus lábios enquanto o seu cabelo loiro esvoaçava ao vento.

A jovem fora libertada! 

Os dias foram passando e, escusado será dizer que quem ficou aprisionado fora o príncipe!  Desde o raiar, ao escurecer do pensamento e ao coração… O olhar fixava consistentemente na maravilhosa criatura a quem a liberdade queria capturar de novo. Tão rapidamente o casamento foi consumado como os olhos da jovem princesa foram lacrimejados. Ninguém percebia porquê. O calor do verão desapareceu, as folhas caíram e o Inverno já se instalara quando o príncipe mandou chamar um velho escravo, amigo da princesa na esperança de “tirar nabos da púcara”, uma vez que os médicos do reino de nada serviram. O velho escravo movido pela amizade, nostalgia e responsabilidade confidenciou ao príncipe que sua esposa sofria de saudades de sua terra natal. É que no inverno além de fazer frio, também nevava muito! De imediato o príncipe mandou plantar amendoeiras, as maiores que o mundo tinha. Aproveitou o Inverno para que elas florissem em fevereiro.

Assim foi! Uma bela manhã, quando as amendoeiras estavam todas floridas nas extensas planícies até às ingremes montanhas, a jovem princesa sobe ao terraço e depara-se com uma paisagem deslumbrantemente branca até onde os olhos conseguiram alcançar.

As amendoeiras tinham florido e pintavam de branco! O inverno deu lugar à primavera, as lágrimas ao sorriso e as amendoeiras ao nome do lugar de Almendra. Os dias da corte em que as senhoras bordavam, deram lugar a grandes passeios, risos, prosas e poesias. E eram mais ou menos assim:

 "Amendoeira em Flor
 
Quem quererá desfrutar destas flores
P´las terras do Douro em rio que corre?
Deslumbre de aromas encantos de odores
Salpicos de rosa, em branco que envolve!
 
Jardim fascinado germina em amores
Em braços teus, Princesa recolhes,
Tamanha beleza de adorno e cores…
Expandes alvuras em sonhos que acolhes.
 
Pureza da Beira, em teu branco nascer;
Alegres de orla, em teu rosa crescer;
Fascinados por ti… em teu esplendor.
 
Encantas nas linhas, viagens tecer;
Frescos jardins … deixai-nos morrer,
Cativados por ti… Amendoeira em Flor!"

 

Nos longos dias de verão, as amêndoas eram colhidas pelos escravos, o povo vislumbrava a corte com os bolinhos dessa maravilhosa fruta. As longas noites de inverno eram passadas à lareira com um naco de amêndoa caramelizada ou um delicioso bolo de amêndoa cozido com o maior dos carinhos no forno a lenha. Passou a nevar naquela região em que as amendoeiras florescem no início da primavera, onde os trovadores cantam ao rio, à natureza e à neve. A princesa tornou-se numa grande poetisa e entoava ao seu príncipe assim:

 "Noite de magia
 
Passeio na rua da aldeia fria
Deserta que no cair da noite fica,
Recolhem-se gentes cansadas da lida
Aquecem a casa acendem fogueiras,
 
Gelando e tremendo sem arredar pé
Fico quieta esperando que alguém,
Repare no mesmo que já notei…
Enfrente o frio e o sinta também!
 
Aquilo que eu sinto, tanta alegria
No qual me parece sendo magia,
Cobria a rua com o seu véu…
 
Menina de gorro, jovem de trança
É alegria de gente criança,
Flocos de neve vindos do céu!"


Carla Bordalo 

A Costureirinha

A menina que nascera apenas de uma mãe, desconhecendo o significado de ser criada por um pai, depressa aprendeu os truques da costura. Cresceu envolta aos cortes e talhava uma saia ou uma camisa melhor que muitos alfaiates de renome com uma tesoura nos acertos e alinhavos de fatos azuis-escuros domingueiros e casamenteiros. Perfeita nos acabamentos, depressa desenvolveu o gosto pelos alforges mais refinados e ambiciosos que as mãos lhe permitiam conhecer. Passava os dias absorvida nos seus talentos como quem passa pela poesia orgulhosa dos reflexos únicos da mera existência. Os anéis não chegavam para complementar a sede do orgulho e da embebida vaidade em que consumia cada palavra despejada nas amizades mal cultivadas. Apaixonou-se também ela em dia destinado a uma prova de roupa masculina. Que bem que ficara aquele corpo vestido e talhado de tão sublime conforto! Mera poesia a uma paixão impossível comprometedora de seu coração em que tanto passou a sangrar sem precisar de uma agulha para o furar. Nenhuma linha poderia rematar aquele estrago, nem a máquina de costura remendaria um coração desfeito. Os seus dias eram gastos na costura, sentada junto à janela de agulha na mão com um coração roto igual a um trapo velho à espera que os olhos vissem um alfinete para o farrapo lavar. Já nada brilhava, muito menos o sol que sorria e convidada a um lindo dia de piqueniques em que a fome tingia, mas que o estômago, apertado não permitia. Sua mãe conhecia a causa daquele sofrimento e conseguiu que a filha saísse para um passeio, esperançosa que a dor desaparecesse. Talvez para desanuviar aquele coração mergulhado numa monologa paixão, ou talvez porque nunca acreditou que o amor pudesse matar, espremia agora na filha uma paixão do bater na porta da vida, arrancando das veias na própria morte. A casa foi vendida pela desgostosa mãe a outra família que passou a viver as noites no mais profundo desassossego. O barulho de uma máquina de costura, não permitia que os donos da casa dormissem. Os ruídos de uma tesoura em suposto tecido, ainda se admitiam, agora aquele incomodativo chiar dos pedais que permitiam fazer com que a corrente circulasse e a agulha deslizasse… era demais! Já ninguém estava com a mínima pachorra de aturar constantemente aquela situação, ainda mais porque a dona da casa já tinha apetrechado muitos enxovais sem mover um único dedo! Carla Bordalo