quarta-feira, 9 de março de 2022

A Comadre da Cegonha



Num daqueles dias primaveris, enquanto as macieiras floriam e as videiras rebentavam no seu esplendor, a dona comadre, a senhora Raposa, de nome Margarida, descansava à sombra de uma figueira. Já tinha tentado umas quantas correrias para encher a sua barriguinha: tentou um porco, uma ovelha e até uma soberana vaca. Conseguiu a muito custo uma pequenina lebre para o seu almoço enquanto a mãe coelha estava distraída. Não podemos condenar a senhora Raposa, é que ela também tinha uns filhotes muito pequeninos, acabadinhos de nascer. E os pequeninos gostam de leitinho! Mas se a mamã Raposa não se alimentar também não tem alimento para os seus filhinhos.

Isto é como tudo na vida: comemos e bebemos para vivermos e dar o melhor aos nossos filhotes. – Faz parte! E a senhora Raposa passa o ano inteiro à procura de comida, tal como a senhora formiga: todo o ano, ano todo a trabalhar enquanto a cigarra o passa a cantar. A cigarra pergunta: “porque estás tão atarefada no verão a trabalhar?” “Porque estou a angariar mantimentos para o inverno” “Eu cá passo o verão a cantar ao sol, à vida, à liberdade e ao amor” – Diz a Cigarra.

 Pois é! Mas quando da chegada do inverno, a formiga tem muita comida armazenada e a cigarra não tem nada. Bem, tal e qual a senhora Raposa. Ela é muito parecida com a senhora Cigarra: - Um dia de cada vez-

Mas voltemos ao início da história. Lá andava a senhora Raposa todo o ano a retalhar comida. E digo retalhar porque ela é muito esquisita: Se as maçãs estão verdes, não estão vermelhas. Se os pêssegos não caem é porque não estão maduros, as ameixas estão muito amargas, a erva, come-a tu!

Um dia, e assim muito rapidamente, só mesmo para contar um prefixo do dia a dia da senhora Raposa, eis que passa por baixo de uma pérgula, ou latada, como queiramos chamar, e cai uma uva madura: Só para não voltar atrás pensa: “Estão verdes. Nem os cães as conseguem tragar”. Assim é a senhora comadre. Mas vamos lá ver: nesta história já chamámos comadre muitas vezes. Agora vamos contar um pouco sobre a comadre da senhora Raposa. Antigamente todos eram comadres, compadres e até parceiros para toda a vida juntos da mesma carteira na escola. E a senhora Raposa também tinha uma parceira: a parceira de caça. E era nem mais nem menos a senhora Cegonha de nome Rosa Pardalinha. Enquanto a senhora Raposa caçava em terra, a senhora Cegonha caçava no céu. E tantas primaveras passaram que as duas senhoras já se tratavam por tu.

Um dia de outono, lembraram-se de dar à língua. E história conta contos e lendas por quem os tens, lá vai uma e outra que combinaram um jantar entre elas. Então e porque não? “Vamos jantar a minha casa. Vemos um filme, bebemos uns chás de ervas frescas ali do monte da Coelheira e até uma festa de pijama.” Às seis horas em ponto (porque anoitece cedo e na casa da senhora Raposa não há eletricidade, só um candeeiro a petróleo), a senhora Cegonha estava presente. Bem, pensou ela: “talvez um pouco de jeropiga para entrada e umas castanhas refazidas na areia assadas venham a calhar para entrada antes do jantar”. Nem castanhas nem jeropiga, nem uns figos secos quanto mais umas amêndoas caramelizadas: Vamos diretas ao jantar. Espantos dos espantos, uma mesa posta sem entradas, sem cadeiras e, vejam lá a situação sem toalha. Apenas dois pratos rasos no chão. Caramba, nem a lareira tinha acendido!

“Vamos comer, disse a senhora Raposa”

 A senhora Cegonha, mesmo que quisesse, nem poderia contar às suas amigas o que a sua comadre lhe ofereceu, porque não conseguiu comer ou penicar com aquele bico grandalhão num prato raso. Vejam lá: “uma amiga da caça de tantos anos e faz isto”. Pode lá ser! “pensou indignada”. Nada disse. Raposa matreira! Vou dar-te uma lição!

Passados dias a senhora Cegonha convida a sua comadre para jantar, algo que a Raposa aceitou de bom grado. A senhora Raposa até chegou pontual. A mesa estava pronta, mas desta vez estavam duas azeiteiras, não daquelas que se usam no dia a dia, mas daquelas de antigamente, grandes, com um bico enorme para levar muito azeite e para se fazerem as provas das farinheiras ou os fritos à lareira. Bem, temos que dizer que a senhora Cegonha teve um colapso de consciência, tanto que não se queria vingar! De forma nenhuma. Acontece! Não sou má, não sou como a minha comadre. Com estes mieis de consciência, a senhora Cegonha convidou a comadre Raposa para uma ida à caça noturna.

Foram juntas, vejam só!

A senhora Raposa montou no pequeno corpo da senhora Cegonha e lá foram esvoaçar pelos grandes pinhais de Águeda, Côa, Valancho e Quinta da Povoa.  Deram voltas e voltas até ao anoitecer escuro como breu. Eis que a senhora Raposa viu um coelho, esfomeada, assim como quem está sempre a comer, pois nem guarda a comida como a cigarra, fez- se ao mundo pensando como a formiga. Eu vou apanhar este coelho que se encontra por baixo de mim e comê-lo. Nem se lembrou que estava no dorso da sua comadre, nem se lembrou que estava a esvoaçar de tão egoísta que era, e assim foi. E aí vai ela toda airosa! De repente incrinou-se com a maior vontade de comer, come quem sempre vive para comer e eis que cai das asas da senhora Cegonha. Caiu.!

Ainda hoje se vê, quem por lá passar, um precipício numa montanha de fragas um volto, um cismo, ou uma montanha de pedregulhos milionários para quem lá anda.


Carla Bordalo

Amendoeiras em Flor




Há muitos anos atrás, quando ainda o país era governado, ou desgovernado pelos mouros quem sabe não conta, existia um príncipe famoso por toda a península Ibérica. O seu nome, Almorávidas, jovem de constituição colossal, heroico aos olhos do povo, nunca antes fora derrotado por maiores e que por mais batalhas travasse.

Certo dia ao nascer do sol, dirigiu-se com os seus mais temidos homens junto à praça onde os escravos seriam vendidos. Eis que seus olhos negros se deparam com uns belos olhos azuis, cabelo amarelo e pele clara como a neve. Corpo esguio e refletido aos primeiros raios de sol uma bela jovem, triste, claro está, mas lindíssima criatura feminina. Deslumbrado, nem tanto pela formosura, pelo corpo, olhos ou cabelo, o príncipe também ele ficou aprisionado.

O cérebro ordenava que se movesse, que as pernas andassem e seu corpo saísse dali para fora, mas como tudo na vida, nem sempre nestas ocasiões o coração obedece. Sentiu o que nunca sentira! Que raio! de repente os seus ouvidos ouvem a sua própria voz ordenar que a bela escrava, quase uma menina se aproximasse.

- Como te chamas, perguntou ele.

- Gilda, respondeu.

- Gilda? Que tal um nome diferente: Princesa do Norte. 

A escrava encolheu os ombros e desinteressada responde que como propriedade que é, o novo título aceitaria de muito bom grado. O coração do príncipe bateu descompensado, o peito apertou como quem aperta uma corda ao pescoço de um animal selvagem. A voz voltou a sair apenas para declamar a liberdade da escrava. Queria passear com ela, queria mostrar os jardins e todo o reino. Queria ainda montar o seu cavalo castanho, segurar a mão da jovem, tocar o seu corpo e beijar os seus lábios enquanto o seu cabelo loiro esvoaçava ao vento.

A jovem fora libertada! 

Os dias foram passando e, escusado será dizer que quem ficou aprisionado fora o príncipe!  Desde o raiar, ao escurecer do pensamento e ao coração… O olhar fixava consistentemente na maravilhosa criatura a quem a liberdade queria capturar de novo. Tão rapidamente o casamento foi consumado como os olhos da jovem princesa foram lacrimejados. Ninguém percebia porquê. O calor do verão desapareceu, as folhas caíram e o Inverno já se instalara quando o príncipe mandou chamar um velho escravo, amigo da princesa na esperança de “tirar nabos da púcara”, uma vez que os médicos do reino de nada serviram. O velho escravo movido pela amizade, nostalgia e responsabilidade confidenciou ao príncipe que sua esposa sofria de saudades de sua terra natal. É que no inverno além de fazer frio, também nevava muito! De imediato o príncipe mandou plantar amendoeiras, as maiores que o mundo tinha. Aproveitou o Inverno para que elas florissem em fevereiro.

Assim foi! Uma bela manhã, quando as amendoeiras estavam todas floridas nas extensas planícies até às ingremes montanhas, a jovem princesa sobe ao terraço e depara-se com uma paisagem deslumbrantemente branca até onde os olhos conseguiram alcançar.

As amendoeiras tinham florido e pintavam de branco! O inverno deu lugar à primavera, as lágrimas ao sorriso e as amendoeiras ao nome do lugar de Almendra. Os dias da corte em que as senhoras bordavam, deram lugar a grandes passeios, risos, prosas e poesias. E eram mais ou menos assim:

 "Amendoeira em Flor
 
Quem quererá desfrutar destas flores
P´las terras do Douro em rio que corre?
Deslumbre de aromas encantos de odores
Salpicos de rosa, em branco que envolve!
 
Jardim fascinado germina em amores
Em braços teus, Princesa recolhes,
Tamanha beleza de adorno e cores…
Expandes alvuras em sonhos que acolhes.
 
Pureza da Beira, em teu branco nascer;
Alegres de orla, em teu rosa crescer;
Fascinados por ti… em teu esplendor.
 
Encantas nas linhas, viagens tecer;
Frescos jardins … deixai-nos morrer,
Cativados por ti… Amendoeira em Flor!"

 

Nos longos dias de verão, as amêndoas eram colhidas pelos escravos, o povo vislumbrava a corte com os bolinhos dessa maravilhosa fruta. As longas noites de inverno eram passadas à lareira com um naco de amêndoa caramelizada ou um delicioso bolo de amêndoa cozido com o maior dos carinhos no forno a lenha. Passou a nevar naquela região em que as amendoeiras florescem no início da primavera, onde os trovadores cantam ao rio, à natureza e à neve. A princesa tornou-se numa grande poetisa e entoava ao seu príncipe assim:

 "Noite de magia
 
Passeio na rua da aldeia fria
Deserta que no cair da noite fica,
Recolhem-se gentes cansadas da lida
Aquecem a casa acendem fogueiras,
 
Gelando e tremendo sem arredar pé
Fico quieta esperando que alguém,
Repare no mesmo que já notei…
Enfrente o frio e o sinta também!
 
Aquilo que eu sinto, tanta alegria
No qual me parece sendo magia,
Cobria a rua com o seu véu…
 
Menina de gorro, jovem de trança
É alegria de gente criança,
Flocos de neve vindos do céu!"


Carla Bordalo 

A Costureirinha

A menina que nascera apenas de uma mãe, desconhecendo o significado de ser criada por um pai, depressa aprendeu os truques da costura. Cresceu envolta aos cortes e talhava uma saia ou uma camisa melhor que muitos alfaiates de renome com uma tesoura nos acertos e alinhavos de fatos azuis-escuros domingueiros e casamenteiros. Perfeita nos acabamentos, depressa desenvolveu o gosto pelos alforges mais refinados e ambiciosos que as mãos lhe permitiam conhecer. Passava os dias absorvida nos seus talentos como quem passa pela poesia orgulhosa dos reflexos únicos da mera existência. Os anéis não chegavam para complementar a sede do orgulho e da embebida vaidade em que consumia cada palavra despejada nas amizades mal cultivadas. Apaixonou-se também ela em dia destinado a uma prova de roupa masculina. Que bem que ficara aquele corpo vestido e talhado de tão sublime conforto! Mera poesia a uma paixão impossível comprometedora de seu coração em que tanto passou a sangrar sem precisar de uma agulha para o furar. Nenhuma linha poderia rematar aquele estrago, nem a máquina de costura remendaria um coração desfeito. Os seus dias eram gastos na costura, sentada junto à janela de agulha na mão com um coração roto igual a um trapo velho à espera que os olhos vissem um alfinete para o farrapo lavar. Já nada brilhava, muito menos o sol que sorria e convidada a um lindo dia de piqueniques em que a fome tingia, mas que o estômago, apertado não permitia. Sua mãe conhecia a causa daquele sofrimento e conseguiu que a filha saísse para um passeio, esperançosa que a dor desaparecesse. Talvez para desanuviar aquele coração mergulhado numa monologa paixão, ou talvez porque nunca acreditou que o amor pudesse matar, espremia agora na filha uma paixão do bater na porta da vida, arrancando das veias na própria morte. A casa foi vendida pela desgostosa mãe a outra família que passou a viver as noites no mais profundo desassossego. O barulho de uma máquina de costura, não permitia que os donos da casa dormissem. Os ruídos de uma tesoura em suposto tecido, ainda se admitiam, agora aquele incomodativo chiar dos pedais que permitiam fazer com que a corrente circulasse e a agulha deslizasse… era demais! Já ninguém estava com a mínima pachorra de aturar constantemente aquela situação, ainda mais porque a dona da casa já tinha apetrechado muitos enxovais sem mover um único dedo! Carla Bordalo



 













sexta-feira, 26 de março de 2010

As Filhas do Sapateiro



Hà muitos anos passados onde a lembrança dos tempos se perdeu nas memórias de quem nunca as leu, sai disparado um conto baseado em épocas de quem nunca as viveu:

Os tempos eram difíceis e no rosto fazia-se sentir o constante desgaste das caminhadas incessantes de um honrado sapateiro, que com as suas duas filhas mais velhas e um jumento abatido percorria a região. Entre caminhos de terra e estreitos carreiros, o pobre sapateiro viajava de povo em povo procurando encarecidamente por quem lhe encomendaria um par de sapatos feitos à mão. As fortes solas que protegiam os pés nos caminhos mais duros das serras, deveriam embelezar o pesado calçado para que durassem quase uma vida inteira. Mesmo assim, e cozidos à mão pelas suas habilidosas filhas, não resistiam mais que um par de anos, porque o trabalho superava em exigente lida na sola de cinco centímetros que suportava uma bota ou um par de socas.
O sapateiro, consciente da falta de dinheiro dos mais desafortunados, sentia-se sempre conduzido pelas ambições das duas filhas mais velhas, onde a esperança casadoira, há muito já tinha morrido no seu peito.
Assim guiado, assentava em muitos dias junto ao largo de Castelo Rodrigo onde vivia naquelas bandas e em desafogada casa, um abastado senhor de muitas riquezas. Rodeado de alguma criadagem e caseiros, estes deixavam transparecer o génio do patrão e diziam que tanto tinha sido abençoado em beleza, como desprovido de coração.
Astutas, as filhas mais velhas do sapateiro não perdiam oportunidade de se fazerem rogar às boas graças do rico senhor, quando um dia quis o destino que a filha mais nova seguisse na temerosa caminhada até à ilustre Casa Grande.
Entre sonhos e ais, suspiravam alto aos embaraços do pai que em silêncio e envergonhado ouvia os desejos das filhas à presença do nobre senhor: “Ai se casares comigo, umas ceroulas nunca antes bordadas te dou!” “Ai se casares comigo, uma camisa nunca antes bordada te dou!”
Irritado com tamanhas baboseiras e decidido a colocar as catraias no lugar certo, o homem desviou os olhos em direcção às encalhadas vozes e deparou com uma terceira presença feminina. Rispidamente se levantou e ao mesmo tempo perguntou: “E tu, que me darias se eu contigo casasse?”
A mais nova assustada como um tambor que quer saltar pelo feito fora e esconder-se de tanta vergonha, respondeu corada: “Se casares comigo, dou-te a luz e o luar e dois filhos marcados porquanto te amar!”
Nisto, as irmãs desataram num estrondoso e cínico gargalhar, enquanto o pai temeroso e desconfiando em tais palavras desconhecidas, preparava já a mão direita para no rosto da filha a assentar!

A promessa do coração

Perplexo como um lago azul de inclinação esverdeada que absorve a natureza pura reflectindo a luz do céu no esplendor do arco-íris, assim ficou o nobre senhor deliciado naquela melodia que o embalava numa emoção desconhecida, quando ouviu a própria voz: “Que a promessa se faça cumprir de casamento como do bater do coração”!
Tão depressa a mão do sapateiro caiu, como as astutas irmãs pararam de rir!
Roídas de inveja, as duas irmãs, depressa esqueceram os delírios e desaforos anteriores remetendo os mesmos em abraços e felicitações à noiva.
O honrado sapateiro sorria enquanto profundos traços desenhados no rosto denunciavam o peso de tal promessa feita na sua presença. Sua filha mais nova iria contrair matrimónio, teria uma vida desafogada passando também ele a usufruir daqueles regalos, mas ninguém desconhecia o poder deste nobre e frio senhor. O sapateiro, chorando por dentro, sentiu-se amargurado.


A inveja

O tempo corria entre as colinas como o vento primaveril que sopra no coração dos enamorados em dias repletos de felicidade. Aos dois amantes uniram-se anéis de profundos resguardos divididos entre o amanhecer do dia e o cair da noite. Absorvidos em admirações e encantos, permaneciam alheios ao veneno cuspido pelas entranhas do seu próprio lar, quando receberam na sua casa uma nova criada e futura mãe solteira que acolheram como se dela se tratasse.
No aconchego da Casa Grande, as irmãs brilhavam em trajes bordados de finas cores disfarçando o despeito que sentiam pela felicidade da jovem irmã, como se tivessem sido despojadas de algum amor que outrora lhes pertencera. Viviam como donas e senhoras da vida alheia dispondo de suas vontades junto à criadagem impondo ordens e disparando desejos.
O tempo da caça marcava uma época de aproximação entre nobres que se envolviam nas caçadas entre florestas durante dias. Grandiosos bosques foram plantados para que senhores cavalgassem acompanhados por seus cães na caça ora à raposa por divertimento, ora por caçar animais a seu bel-prazer.
Renitente, o futuro pai evidenciou a sua vontade em aguardar o nascimento do filho, preferindo acompanhar de perto as dores da sua amada e toda a felicidade daí resultante, porém foi convencido pelas duas cunhadas a acompanhar a caçada.
Os rapazes nasceram com uns lindos sinais que lembravam o quarto crescente na testa de um e o quarto minguante na testa do outro, figurando as marcas da lua. O trabalho de parto, assegurado pelas irmãs e assistido pela criada mais velha e experiente da casa, foi demorado deixando a jovem mãe num abatimento total pelo esforço ao nascimento de dois bebes.
Quis a coincidência, que a acolhida criada tivesse dado à luz algumas horas antes um belo rapazinho de corpinho, pés, mãos e rosto pequeninos. Os olhos da criada ainda brilhavam na emoção de ser mãe, quando a irmã mais velha aperta o perfeito rosto pequenino contra uma toalha, sugando-lhe a vida.
A troca foi efectuada com tanta rapidez, como um raio saído numa noite escura em que o barulho ensurdecedor se entranhou no medo de quem assistiu.
As mãos da parteira queimavam com o peso das jóias e da perseguição ao zelo, enquanto saía escondida com os bebés dentro de um cesto incumbida de os matar.

O desgosto

Dissimuladas, as irmãs notificaram o cunhado banhadas em lágrimas, garantindo que o bebé tinha nascido morto castigando Deus os dois pelo falso amor que a jovem mãe jurou ao marido na falsa promessa.
Emprenhado nos ouvidos pelas palavras de desconforto de duas malvadas bruxas, o pai sentiu-se morrer pelo amor que viu nascer em palavras harmoniosas da sua amada e desgostoso, o transformou em ódio e rancor.
Depressa a julgou e castigou. Mandou que lhe cortassem o cabelo ao mesmo tempo que saltaram da sua boca palavras desprovidas de sentimento prometendo matança aquela mulher.
O sapateiro suplicou encarecidamente pela vida da filha recorrendo à sensibilidade do seu coração humano que já amou. Talvez o seu coração ouvisse o que o ódio o permitiu ouvir e mandou construir na parte mais elevada da casa, uma enorme torre onde mandou encarcerar a jovem. De seguida ordenou aos criados, um a um, para que ninguém levasse alimento da mesa à sua boca. Comeria pior que os seus cães e só estavam autorizados a levar água por medida e bacalhau salgado, para lhe secar a vida!
As irmãs ordenaram à jovem criada, que procurasse a parteira e confirmasse junto desta a morte dos sobrinhos. Deveria também esta desaparecer para sempre guardando o segredo depois de ser recompensada pelo sacrifício forçado. Foi levada ao antigo quarto da jovem mãe que se encontrava enclausurada, e de onde lhe deram a escolher as jóias que esta precisaria para pagar vida nova noutro lugar. A criatura desviou o olhar pelo quarto procurando como quem procura a felicidade escondida num qualquer recanto longe de um coração vazio, em que o medo não faria parte na sua caminhada. O seu rosto brilhou ao mesmo tempo que as lágrimas deram lugar ao sorriso incandescente, quando a sua mão segurou um pequeno punhal pousado ao lado de uma madeixa de cabelo largada sobre uma penteadeira. Num momento de loucura, em que a razão a consumiu, exclama ao mesmo tempo em que crava o punhal no peito: “ O meu filho a esta hora está no céu e tem fome, é para lá que eu vou!”


A Fuga

A velha parteira, que fora nascida e criada na Casa Grande, fugia agora como o diabo foge da cruz. Amedrontada e sozinha, sentiu que não poderia carregar um fardo tão pesado e, apelando à sua consciência deixou que o cesto navegasse nas águas calmas do rio Côa, sob a protecção de Santa Maria de Aguiar.
Durante anos vagueou escondida por entre grutas e abrigos que as serras naturais premeiam, desaparecendo entre as noites mais obscuras dos nossos mais íntimos receios.
O humilde sapateiro, proibido pelas descendentes e vigiado pelos criados de visitar a própria filha, e, incapaz de os encarar desprovido de força de um lince bravo capaz de devorar oceanos e abraçar despidos montes com as suas garras, se as tivesse, o gentil-homem rendeu-se ao poder do genro e à sua débil fortuna, saindo da mesma forma que entrara na casa junto ao largo do Castelo: pobre!


O Sapateiro

O infeliz, vagueava sem razão aparente de caminhar por aqueles caminhos de vida premiados apenas pelo pó e pela escuridão em que o coração não intui na direcção a tomar. Sentia que o trilho da direita o iria levar ao mesmo trilho da esquerda. Sentou-se no chão e ficou parado como a pedra onde estava sentado e chorou como quem chora e grita com o mesmo poder aflito de quem quer derrubar o mundo com as próprias mãos. Sempre amou as suas filhas da mesma forma e agora o amor que tinha por uma erguia-se ao amor que sentira pelas outras. Deprimido, sentia-se num incapaz como um vagabundo que vagueia na sua própria existência e percebe que a sua vida vale menos que nada sem os outros.

Abraçado à sua depressão existencial, procurou dentro do farnel a agulha com que sempre brilhou no rigor da sua profissão, e, decidido num acto de submissão dirige o olhar ao céu pedindo pela última vez a Deus que olhasse pelos seus. A mão preparava já o momento certo e o olhar encobria o local indicado para cravar a afiada agulha quando os seus sentidos acordaram noutra direcção.

Mesmo à sua frente, estava um rasto dirigido ao rio e entoando um som abafado parecido com um animal selvagem. Deixou-se estar. Agora os pensamentos vagueavam entre a razão e o medo de ser morto por um animal qualquer. O som parecia-lhe conhecido! Não se tratava de um animal e não ouvia este som há muitos anos. Levantou-se e correu em direcção ao rio procurando descobrir a origem do som.
Com toda a clareza as suas preces foram atendidas, e o seu coração foi remetido ao auge da protecção daqueles seres pequeninos presenteados a seus pés.
O sapateiro rejuvenescia dia após dia a olhos vistos pelo sol, pela lua, pelo rio e pelas águas que nele corriam. Os seus netos cresciam fortes e astuciosos entre histórias inventadas numas certas, noutras erradas. Porém os anos passaram pelo sapateiro feliz e a morte encantou-o numa noite em que pescava para o sustento dos seus. Adormeceu enquanto esperava a entrada do peixe na rede, e não acordou.


A Velha Parteira

Os meses que se seguiram foram de tristeza e desorientação para os rapazes que se aventuravam pelas serras tentando novas aventuras e brincadeiras preferencialmente no massacre de répteis como passatempo. Nem perceberam a chegada de um vulto. Assustados com o grito da mulher e tentados a correr para o seu único e conhecido refugio, descobriram que o vulto era parecido ao falecido sapateiro. Seria ele?!
Intrigados, foram averiguar mais de perto com as mãos fixadas no rosto da desconhecida criatura, enquanto o cérebro desvendava pelos olhos da mulher que também ela se entregava à descoberta de sinais, do seu mais tenebroso segredo.

A noite surgia como um vagão escuro através de imponentes arvoredos rodeando o rio de sons assustadores sempre que soprava o vento derrubando tudo à sua frente. O medo entranhado na alma da pobre parteira sussurrava constantemente na consciência dela como um abutre na espreita da morte a qualquer momento. E o medo, ou talvez a consciência e o medo, alertavam a velha como um relógio que bate as horas de minuto a minuto. Empurrada na decisão de acalentar a própria tristeza quando revia os rápidos momentos em que tudo aconteceu, sentou-se num pequeno banco de três pés junto à lareira e recolheu os rapazes junto ao peito. No dia seguinte tricotou dois gorros de velha lã. Quando chamou pelos rapazes já se encontravam despejadas pela mesa as jóias de ouro que tinha ganho como quem ganha o inferno eternamente. Queria despejar o inferno como quem despeja um balde de água suja pelas águas do rio. As crianças entregariam o ouro ao purgatório e o rio levaria o inferno até ao mar.
Como uma suave brisa a embalar um berço, também dois novos corações foram embalados numa poesia de reencontro à julgada felicidade.


A Jovem Mãe

Entoava por todo o Castelo o som de harmoniosas flautas anunciando um dia de festa. Repletas de viajantes, as ruas enchiam-se de pessoas que vendiam e compravam, viajantes e ciganos e outros fiéis e menos fiéis, em romaria, uns abancavam, outros empurravam e gritavam tentando a todo o custo sentar no melhor lugar que lhes permitira ver a procissão passar.
Festa na rua, festa em casa. E a Casa Grande também abriu as portas e recebeu a procissão como havia de convir nessas circunstâncias.

Porém o ar festivo que se respirava dentro de casa, não era o mesmo ar para todos. Algum ar parecia o odor dos estábulos onde dormem os cavalos e raramente é limpo. Esse era o ar em que a jovem mãe já sem forças para o respirar, suplicava diariamente para ver o marido. Os ignorados apelos massacravam o seu coração e despedaçavam lentamente o seu corpo que se definhava à medida que a solidão a empurrava contra a loucura amarga dos seus dias. Quando o sal secou por completo as suas lágrimas, e a escassez de água se sumiu por entre as veias, desistiu de implorar. Ao mesmo tempo que deixou de esperar, também deixou de o sentir.


De volta à Casa Grande

A velha parteira abençoou as crianças mesmo à entrada da Casa Grande, quando as deixou entregues à sua sorte com o peso do ouro na mão de uma, e um pequeno pássaro na mão da outra.
Orientaram os seus passos em direcção a uma grande mesa, expostos aos olhares dos criados que serviam em silêncio as pessoas que caladas levavam à boca grandes grafadas refastelados em tanta fartura. A singeleza de cores que marcava o pequeno pássaro, maravilhou os convidados quando repararam no brilho das pequenas mãos de criança. Foram convidadas a sentar à mesa e partilharem com estes da sumptuosa refeição. Todos os olhares exclamavam de admiração, quando estes em vez de enfartarem a barriga, levando à boca pequenas migalhas dividiam a sua refeição com o pássaro.
Intrigados com tal atitude, os pequenos foram questionados relativamente à falta de apetite. Se estranharam o porquê, decerto ainda mais estranharam a resposta:

“Nascidos no ventre do amor
Despejados da nossa sorte
Segurados ao abandono
Sapateiro livrou da morte

Comeremos das migalhas
Do pássaro em nossa mão
No chão com que agasalhas
Nossa mãe pior que um cão

Estas cores são singelas
No pássaro livre que voa
Soberbas são as moedas
Em coração que destoa”


O Reencontro

O pai, o grande e nobre senhor, estupefacto e destruído como quem fora atirado nas fúrias de um vulcão e encontra o céu lá dentro, corre ao encontro dos filhos e despeja o conteúdo da bolsa. Porém, sabia que não precisava de o ter feito quando sentiu a força do poema como quem sente um punhal que se vai enterrando aos poucos no peito de um pai. O seu coração estalou em mil pedaços de sentidos.
Parecia ele, agora um homem de rosto renascido. Fascinado estava com tal descoberta aos filhos, que nem cabia nele em tanta angústia pelo que tinha feito. Com a mesma rapidez com que julgou a mulher, da mesma forma enxotou as cunhadas para o castigo vergonhoso nas mãos do carrasco.
Tinha pressa de libertar a sua amada e correr como uma centopeia para os seus braços. Subiu as escadas em direcção à torre, onde mantivera presa a mãe de seus dois filhos durante muito tempo.
Subiram também duas criadas levando comida e abundante água na esperança de socorro à fome e sede da miserável mãe.
Já sem forças, os olhos da frágil senhora foram abrindo ao mesmo tempo que despertam os sentidos num teimoso nascer do dia. Sentiu no rosto um calor que há muito não sentia e descobriu naquelas mãos pequeninas um carinho que nunca antes tivera. Deslocou a magra mão pelas testas das crianças e deixou sair a última lágrima que o coração de mãe tinha guardado.

O Voo

As crianças dirigiram-se à varanda agora aberta por onde se notava o cair da noite, e em suave gesto libertaram o pássaro que voou como uma pena ao sabor do vento, ao mesmo tempo que o nobre senhor a quem nunca chegaram a chamar pai, carregava em seus braços o corpo já sem vida daquela senhora que seria a mãe, mas que nunca lhe conheceram um colo. Também se ouviu o voo daquelas almas ganhando liberdade mas sem a leveza de dois pássaros apaixonados. Apenas o som da queda entoou mais forte que o barulho da multidão lá fora.
Quando soaram os sinos, e entre gritos, aflições e rezas, a multidão juntava desgraças no átrio da casa, permitindo que um vulto se infiltrasse lá dentro.
O pânico depressa se juntou aos horrores de quem viu a Casa Grande a arder. Enormes chamas erguiam pelos céus rompendo em impotentes mãos que nada poderiam fazer para salvar o que quer que fosse.

Terminara a romaria em menos de um dia, quando a certeira tragédia se instalou no coração dos habitantes e no caminhar dos peregrinos. Por labaredas de restos e pó de cinzas, os escombros faziam-se notar pela povoação que calcava com desgosto os restos mortais das questões envolvidas na desgraça.
Reviveram os inquietantes momentos das fatalidades daquele dia como quem revive uma história encantada por desencantar num lugar em que ninguém lá quis morar. Limparam as cinzas, recolheram o lixo e ficaram as pedras caídas arruinando as memórias de quem lá passava no suplício de caminhar em pesadas inquietudes.

Permaneceu o silêncio de quem assistiu ou porventura crê ter assistido ao romper da primeira chama da tocha no atear do fogo da vingança. Acreditam que o vulto ao entrar em casa como uma sombra habituada à escuridão da alma, saiu de braços dados com a luminosidade dos filhos da lua.
O segrego acompanhou sempre o local ocupado no futuro das novas vidas. A lenda, memoriza e espalha com ela uma nova história.


Carla Bordalo

Lenda de Marcos



Naqueles verões da minha infância em que raramente a chuva premiava as terras quentes da aldeia, uma história era infinitamente contada e ouvida com a mesma atenção e entusiasmo como se fosse pela primeira vez.
A história conta o pedaço de vida de um homem de nome Marcos que as avós das nossas avós conheceram e que hoje eu, vos vou também contar: Há muitos anos atrás vivia-se com muito pouco e Marcos pai de família, tinha muitas bocas para sustentar. Naquele tempo, a miséria era muita, a fome apertava nos lares pobres em Invernos rigorosos e tal como outras pessoas, Marcos também percorria vales e montes na aventurada expectativa de encontrar alimento. Junto à raia, fazia-se algum comércio trazido de Espanha através de estreitos caminhos de cabras, onde só passavam mesmo os homens e os animais carregados de contrabando.
Astuto, levado pela necessidade, ou apenas pela curiosidade, resolveu fazer vigias durante a noite às cargas e aos carregadores. Marcos, conhecedor da serra como quem conhece todos as linhas de suas mãos, sabia das rotas, e escondido no mato, resolveu que seria mais útil esperar a carga, que ir a Espanha comprar a carga. Em pleno dia, amarrou uns chocalhos à ponta dos fios e quando os animais passavam durante a noite, assustavam-se e caiam. Rapidamente Marcos aproveitava para os roubar, escondendo os valores em grutas. Marcos, ladrão, da aldeia teve que fugir e na serra se esconder. Durante muitos anos, sua mulher caminhava serra acima cuidando e visitando Marcos. E talvez num daqueles belos e soalheiros dias primaveris, em que o calor convidou um carinho entre eles, sua mulher lhe terá dito: “Marcos, já tens cabelos brancos, já te podes ir arrependendo!”
Nesse Verão, não choveu e sua mulher vagueava pela aldeia dizendo: “Se querem água na terra, vão buscar Marcos à serra”. Tal como a loucura encoberta, também na razão desconhecida, ninguém lhe liga! Sete anos passaram sem água e o povo desesperava enquanto a mulher de Marcos reclamava: “Se querem água na terra, vão buscar Marcos à serra”.
E num infundamentado bloco de ideias e circunstâncias desconhecidas, o povo juntou curiosidade e tempo. Subiram a serra numa manhã quente e seca de Outono e, guiados no caminho pela mulher de Marcos, o povo ficou surpreendido, não por encontrarem o corpo coberto de folhas, mas sim pelo seu perfeito estado de conservação.
Ao descerem na sua caminhada, carregando com o corpo, cai uma forte chuvada bem no meio do trajecto. O corpo foi enterrado onde está implantada a igreja.
Em anos que não chovia, lá subia o povo com o padre da Aldeia em romaria pela serra, conta-se que a água sempre caía na descida.
Conta-se ainda, que um dia, algum iluminado pensador, concluiu que ele era santo pelo estado de conservação do corpo e pelo milagre da chuva que regou os campos secos nesse dia, e decidido o tentou desenterrar. Mas cada vez que cavava, notava que a terra aumentava podendo ser o esqueleto que mais se enterrava, ou a terra levitava...
Lenda ou não, na Serra de São Marcos ainda estão as ruínas daquela que dizem ser a sua casa, e as duas grutas onde supostamente Marcos escondeu o que roubou também se encontram lá, dando actualmente refúgio a alguns morcegos.

Carla Bordalo