As Filhas do Sapateiro

Há muitos anos passados onde a lembrança dos tempos se perdeu nas memórias de quem nunca as leu, sai disparado um conto baseado em épocas de quem nunca as viveu:

Os tempos eram difíceis e no rosto fazia-se sentir o constante desgaste das caminhadas incessantes de um honrado sapateiro, que com as suas duas filhas mais velhas e um jumento abatido percorria a região. Entre caminhos de terra e estreitos carreiros, o pobre sapateiro viajava de povo em povo procurando encarecidamente por quem lhe encomendaria um par de sapatos feitos à mão. As fortes solas que protegiam os pés nos caminhos mais duros das serras, deveriam embelezar o pesado calçado para que durassem quase uma vida inteira. Mesmo assim, e cozidos à mão pelas suas habilidosas filhas, não resistiam mais que um par de anos, porque o trabalho superava em exigente lida na sola de cinco centímetros que suportava uma bota ou um par de socas.
O sapateiro, consciente da falta de dinheiro dos mais desafortunados, sentia-se sempre conduzido pelas ambições das duas filhas mais velhas, onde a esperança casadoira, há muito já tinha morrido no seu peito.
Assim guiado, assentava em muitos dias junto ao largo de Castelo Rodrigo onde vivia naquelas bandas e em desafogada casa, um abastado senhor de muitas riquezas. Rodeado de alguma criadagem e caseiros, estes deixavam transparecer o génio do patrão e diziam que tanto tinha sido abençoado em beleza, como desprovido de coração.
Astutas, as filhas mais velhas do sapateiro não perdiam oportunidade de se fazerem rogar às boas graças do rico senhor, quando um dia quis o destino que a filha mais nova seguisse na temerosa caminhada até à ilustre Casa Grande.
Entre sonhos e ais, suspiravam alto aos embaraços do pai que em silêncio e envergonhado ouvia os desejos das filhas à presença do nobre senhor: “Ai se casares comigo, umas ceroulas nunca antes bordadas te dou!” “Ai se casares comigo, uma camisa nunca antes bordada te dou!”
Irritado com tamanhas baboseiras e decidido a colocar as catraias no lugar certo, o homem desviou os olhos em direcção às encalhadas vozes e deparou com uma terceira presença feminina. Rispidamente se levantou e ao mesmo tempo perguntou: “E tu, que me darias se eu contigo casasse?”
A mais nova assustada como um tambor que quer saltar pelo feito fora e esconder-se de tanta vergonha, respondeu corada: “Se casares comigo, dou-te a luz e o luar e dois filhos marcados porquanto te amar!”
Nisto, as irmãs desataram num estrondoso e cínico gargalhar, enquanto o pai temeroso e desconfiando em tais palavras desconhecidas, preparava já a mão direita para no rosto da filha a assentar!

A promessa do coração

Perplexo como um lago azul de inclinação esverdeada que absorve a natureza pura reflectindo a luz do céu no esplendor do arco-íris, assim ficou o nobre senhor deliciado naquela melodia que o embalava numa emoção desconhecida, quando ouviu a própria voz: “Que a promessa se faça cumprir de casamento como do bater do coração”!
Tão depressa a mão do sapateiro caiu, como as astutas irmãs pararam de rir!
Roídas de inveja, as duas irmãs, depressa esqueceram os delírios e desaforos anteriores remetendo os mesmos em abraços e felicitações à noiva.
O honrado sapateiro sorria enquanto profundos traços desenhados no rosto denunciavam o peso de tal promessa feita na sua presença. Sua filha mais nova iria contrair matrimónio, teria uma vida desafogada passando também ele a usufruir daqueles regalos, mas ninguém desconhecia o poder deste nobre e frio senhor. O sapateiro, chorando por dentro, sentiu-se amargurado.


A inveja

O tempo corria entre as colinas como o vento primaveril que sopra no coração dos enamorados em dias repletos de felicidade. Aos dois amantes uniram-se anéis de profundos resguardos divididos entre o amanhecer do dia e o cair da noite. Absorvidos em admirações e encantos, permaneciam alheios ao veneno cuspido pelas entranhas do seu próprio lar, quando receberam na sua casa uma nova criada e futura mãe solteira que acolheram como se dela se tratasse.
No aconchego da Casa Grande, as irmãs brilhavam em trajes bordados de finas cores disfarçando o despeito que sentiam pela felicidade da jovem irmã, como se tivessem sido despojadas de algum amor que outrora lhes pertencera. Viviam como donas e senhoras da vida alheia dispondo de suas vontades junto à criadagem impondo ordens e disparando desejos.
O tempo da caça marcava uma época de aproximação entre nobres que se envolviam nas caçadas entre florestas durante dias. Grandiosos bosques foram plantados para que senhores cavalgassem acompanhados por seus cães na caça ora à raposa por divertimento, ora por caçar animais a seu bel-prazer.
Renitente, o futuro pai evidenciou a sua vontade em aguardar o nascimento do filho, preferindo acompanhar de perto as dores da sua amada e toda a felicidade daí resultante, porém foi convencido pelas duas cunhadas a acompanhar a caçada.
Os rapazes nasceram com uns lindos sinais que lembravam o quarto crescente na testa de um e o quarto minguante na testa do outro, figurando as marcas da lua. O trabalho de parto, assegurado pelas irmãs e assistido pela criada mais velha e experiente da casa, foi demorado deixando a jovem mãe num abatimento total pelo esforço ao nascimento de dois bebes.
Quis a coincidência, que a acolhida criada tivesse dado à luz algumas horas antes um belo rapazinho de corpinho, pés, mãos e rosto pequeninos. Os olhos da criada ainda brilhavam na emoção de ser mãe, quando a irmã mais velha aperta o perfeito rosto pequenino contra uma toalha, sugando-lhe a vida.
A troca foi efectuada com tanta rapidez, como um raio saído numa noite escura em que o barulho ensurdecedor se entranhou no medo de quem assistiu.
As mãos da parteira queimavam com o peso das jóias e da perseguição ao zelo, enquanto saía escondida com os bebés dentro de um cesto incumbida de os matar.

O desgosto

Dissimuladas, as irmãs notificaram o cunhado banhadas em lágrimas, garantindo que o bebé tinha nascido morto castigando Deus os dois pelo falso amor que a jovem mãe jurou ao marido na falsa promessa.
Emprenhado nos ouvidos pelas palavras de desconforto de duas malvadas bruxas, o pai sentiu-se morrer pelo amor que viu nascer em palavras harmoniosas da sua amada e desgostoso, o transformou em ódio e rancor.
Depressa a julgou e castigou. Mandou que lhe cortassem o cabelo ao mesmo tempo que saltaram da sua boca palavras desprovidas de sentimento prometendo matança aquela mulher.
O sapateiro suplicou encarecidamente pela vida da filha recorrendo à sensibilidade do seu coração humano que já amou. Talvez o seu coração ouvisse o que o ódio o permitiu ouvir e mandou construir na parte mais elevada da casa, uma enorme torre onde mandou encarcerar a jovem. De seguida ordenou aos criados, um a um, para que ninguém levasse alimento da mesa à sua boca. Comeria pior que os seus cães e só estavam autorizados a levar água por medida e bacalhau salgado, para lhe secar a vida!
As irmãs ordenaram à jovem criada, que procurasse a parteira e confirmasse junto desta a morte dos sobrinhos. Deveria também esta desaparecer para sempre guardando o segredo depois de ser recompensada pelo sacrifício forçado. Foi levada ao antigo quarto da jovem mãe que se encontrava enclausurada, e de onde lhe deram a escolher as jóias que esta precisaria para pagar vida nova noutro lugar. A criatura desviou o olhar pelo quarto procurando como quem procura a felicidade escondida num qualquer recanto longe de um coração vazio, em que o medo não faria parte na sua caminhada. O seu rosto brilhou ao mesmo tempo que as lágrimas deram lugar ao sorriso incandescente, quando a sua mão segurou um pequeno punhal pousado ao lado de uma madeixa de cabelo largada sobre uma penteadeira. Num momento de loucura, em que a razão a consumiu, exclama ao mesmo tempo em que crava o punhal no peito: “ O meu filho a esta hora está no céu e tem fome, é para lá que eu vou!”


A Fuga

A velha parteira, que fora nascida e criada na Casa Grande, fugia agora como o diabo foge da cruz. Amedrontada e sozinha, sentiu que não poderia carregar um fardo tão pesado e, apelando à sua consciência deixou que o cesto navegasse nas águas calmas do rio Côa, sob a protecção de Santa Maria de Aguiar.
Durante anos vagueou escondida por entre grutas e abrigos que as serras naturais premeiam, desaparecendo entre as noites mais obscuras dos nossos mais íntimos receios.
O humilde sapateiro, proibido pelas descendentes e vigiado pelos criados de visitar a própria filha, e, incapaz de os encarar desprovido de força de um lince bravo capaz de devorar oceanos e abraçar despidos montes com as suas garras, se as tivesse, o gentil-homem rendeu-se ao poder do genro e à sua débil fortuna, saindo da mesma forma que entrara na casa junto ao largo do Castelo: pobre!


O Sapateiro

O infeliz, vagueava sem razão aparente de caminhar por aqueles caminhos de vida premiados apenas pelo pó e pela escuridão em que o coração não intui na direcção a tomar. Sentia que o trilho da direita o iria levar ao mesmo trilho da esquerda. Sentou-se no chão e ficou parado como a pedra onde estava sentado e chorou como quem chora e grita com o mesmo poder aflito de quem quer derrubar o mundo com as próprias mãos. Sempre amou as suas filhas da mesma forma e agora o amor que tinha por uma erguia-se ao amor que sentira pelas outras. Deprimido, sentia-se num incapaz como um vagabundo que vagueia na sua própria existência e percebe que a sua vida vale menos que nada sem os outros.

Abraçado à sua depressão existencial, procurou dentro do farnel a agulha com que sempre brilhou no rigor da sua profissão, e, decidido num acto de submissão dirige o olhar ao céu pedindo pela última vez a Deus que olhasse pelos seus. A mão preparava já o momento certo e o olhar encobria o local indicado para cravar a afiada agulha quando os seus sentidos acordaram noutra direcção.

Mesmo à sua frente, estava um rasto dirigido ao rio e entoando um som abafado parecido com um animal selvagem. Deixou-se estar. Agora os pensamentos vagueavam entre a razão e o medo de ser morto por um animal qualquer. O som parecia-lhe conhecido! Não se tratava de um animal e não ouvia este som há muitos anos. Levantou-se e correu em direcção ao rio procurando descobrir a origem do som.
Com toda a clareza as suas preces foram atendidas, e o seu coração foi remetido ao auge da protecção daqueles seres pequeninos presenteados a seus pés.
O sapateiro rejuvenescia dia após dia a olhos vistos pelo sol, pela lua, pelo rio e pelas águas que nele corriam. Os seus netos cresciam fortes e astuciosos entre histórias inventadas numas certas, noutras erradas. Porém os anos passaram pelo sapateiro feliz e a morte encantou-o numa noite em que pescava para o sustento dos seus. Adormeceu enquanto esperava a entrada do peixe na rede, e não acordou.


A Velha Parteira

Os meses que se seguiram foram de tristeza e desorientação para os rapazes que se aventuravam pelas serras tentando novas aventuras e brincadeiras preferencialmente no massacre de répteis como passatempo. Nem perceberam a chegada de um vulto. Assustados com o grito da mulher e tentados a correr para o seu único e conhecido refugio, descobriram que o vulto era parecido ao falecido sapateiro. Seria ele?!
Intrigados, foram averiguar mais de perto com as mãos fixadas no rosto da desconhecida criatura, enquanto o cérebro desvendava pelos olhos da mulher que também ela se entregava à descoberta de sinais, do seu mais tenebroso segredo.

A noite surgia como um vagão escuro através de imponentes arvoredos rodeando o rio de sons assustadores sempre que soprava o vento derrubando tudo à sua frente. O medo entranhado na alma da pobre parteira sussurrava constantemente na consciência dela como um abutre na espreita da morte a qualquer momento. E o medo, ou talvez a consciência e o medo, alertavam a velha como um relógio que bate as horas de minuto a minuto. Empurrada na decisão de acalentar a própria tristeza quando revia os rápidos momentos em que tudo aconteceu, sentou-se num pequeno banco de três pés junto à lareira e recolheu os rapazes junto ao peito. No dia seguinte tricotou dois gorros de velha lã. Quando chamou pelos rapazes já se encontravam despejadas pela mesa as jóias de ouro que tinha ganho como quem ganha o inferno eternamente. Queria despejar o inferno como quem despeja um balde de água suja pelas águas do rio. As crianças entregariam o ouro ao purgatório e o rio levaria o inferno até ao mar.
Como uma suave brisa a embalar um berço, também dois novos corações foram embalados numa poesia de reencontro à julgada felicidade.


A Jovem Mãe

Entoava por todo o Castelo o som de harmoniosas flautas anunciando um dia de festa. Repletas de viajantes, as ruas enchiam-se de pessoas que vendiam e compravam, viajantes e ciganos e outros fiéis e menos fiéis, em romaria, uns abancavam, outros empurravam e gritavam tentando a todo o custo sentar no melhor lugar que lhes permitira ver a procissão passar.
Festa na rua, festa em casa. E a Casa Grande também abriu as portas e recebeu a procissão como havia de convir nessas circunstâncias.

Porém o ar festivo que se respirava dentro de casa, não era o mesmo ar para todos. Algum ar parecia o odor dos estábulos onde dormem os cavalos e raramente é limpo. Esse era o ar em que a jovem mãe já sem forças para o respirar, suplicava diariamente para ver o marido. Os ignorados apelos massacravam o seu coração e despedaçavam lentamente o seu corpo que se definhava à medida que a solidão a empurrava contra a loucura amarga dos seus dias. Quando o sal secou por completo as suas lágrimas, e a escassez de água se sumiu por entre as veias, desistiu de implorar. Ao mesmo tempo que deixou de esperar, também deixou de o sentir.


De volta à Casa Grande

A velha parteira abençoou as crianças mesmo à entrada da Casa Grande, quando as deixou entregues à sua sorte com o peso do ouro na mão de uma, e um pequeno pássaro na mão da outra.
Orientaram os seus passos em direcção a uma grande mesa, expostos aos olhares dos criados que serviam em silêncio as pessoas que caladas levavam à boca grandes grafadas refastelados em tanta fartura. A singeleza de cores que marcava o pequeno pássaro, maravilhou os convidados quando repararam no brilho das pequenas mãos de criança. Foram convidadas a sentar à mesa e partilharem com estes da sumptuosa refeição. Todos os olhares exclamavam de admiração, quando estes em vez de enfartarem a barriga, levando à boca pequenas migalhas dividiam a sua refeição com o pássaro.
Intrigados com tal atitude, os pequenos foram questionados relativamente à falta de apetite. Se estranharam o porquê, decerto ainda mais estranharam a resposta:

“Nascidos no ventre do amor
Despejados da nossa sorte
Segurados ao abandono
Sapateiro livrou da morte

Comeremos das migalhas
Do pássaro em nossa mão
No chão com que agasalhas
Nossa mãe pior que um cão

Estas cores são singelas
No pássaro livre que voa
Soberbas são as moedas
Em coração que destoa”


O Reencontro

O pai, o grande e nobre senhor, estupefacto e destruído como quem fora atirado nas fúrias de um vulcão e encontra o céu lá dentro, corre ao encontro dos filhos e despeja o conteúdo da bolsa. Porém, sabia que não precisava de o ter feito quando sentiu a força do poema como quem sente um punhal que se vai enterrando aos poucos no peito de um pai. O seu coração estalou em mil pedaços de sentidos.
Parecia ele, agora um homem de rosto renascido. Fascinado estava com tal descoberta aos filhos, que nem cabia nele em tanta angústia pelo que tinha feito. Com a mesma rapidez com que julgou a mulher, da mesma forma enxotou as cunhadas para o castigo vergonhoso nas mãos do carrasco.
Tinha pressa de libertar a sua amada e correr como uma centopeia para os seus braços. Subiu as escadas em direcção à torre, onde mantivera presa a mãe de seus dois filhos durante muito tempo.
Subiram também duas criadas levando comida e abundante água na esperança de socorro à fome e sede da miserável mãe.
Já sem forças, os olhos da frágil senhora foram abrindo ao mesmo tempo que despertam os sentidos num teimoso nascer do dia. Sentiu no rosto um calor que há muito não sentia e descobriu naquelas mãos pequeninas um carinho que nunca antes tivera. Deslocou a magra mão pelas testas das crianças e deixou sair a última lágrima que o coração de mãe tinha guardado.

O Voo

As crianças dirigiram-se à varanda agora aberta por onde se notava o cair da noite, e em suave gesto libertaram o pássaro que voou como uma pena ao sabor do vento, ao mesmo tempo que o nobre senhor a quem nunca chegaram a chamar pai, carregava em seus braços o corpo já sem vida daquela senhora que seria a mãe, mas que nunca lhe conheceram um colo. Também se ouviu o voo daquelas almas ganhando liberdade mas sem a leveza de dois pássaros apaixonados. Apenas o som da queda entoou mais forte que o barulho da multidão lá fora.
Quando soaram os sinos, e entre gritos, aflições e rezas, a multidão juntava desgraças no átrio da casa, permitindo que um vulto se infiltrasse lá dentro.
O pânico depressa se juntou aos horrores de quem viu a Casa Grande a arder. Enormes chamas erguiam pelos céus rompendo em impotentes mãos que nada poderiam fazer para salvar o que quer que fosse.

Terminara a romaria em menos de um dia, quando a certeira tragédia se instalou no coração dos habitantes e no caminhar dos peregrinos. Por labaredas de restos e pó de cinzas, os escombros faziam-se notar pela povoação que calcava com desgosto os restos mortais das questões envolvidas na desgraça.
Reviveram os inquietantes momentos das fatalidades daquele dia como quem revive uma história encantada por desencantar num lugar em que ninguém lá quis morar. Limparam as cinzas, recolheram o lixo e ficaram as pedras caídas arruinando as memórias de quem lá passava no suplício de caminhar em pesadas inquietudes.

Permaneceu o silêncio de quem assistiu ou porventura crê ter assistido ao romper da primeira chama da tocha no atear do fogo da vingança. Acreditam que o vulto ao entrar em casa como uma sombra habituada à escuridão da alma, saiu de braços dados com a luminosidade dos filhos da lua.
O segrego acompanhou sempre o local ocupado no futuro das novas vidas. A lenda, memoriza e espalha com ela uma nova história.


Carla Bordalo